Narração irretocável sobre a passagem da morte


Ao receber um novo paciente, com uma doença grave, penso que estamos ambos sentados à margem do rio. O paciente precisa atravessar para a margem oposta. Ele tem que fazer isso antes que anoiteça. Eu não conheço o paciente, mas conheço bem o rio. Sei onde ele é mais fundo, sei em que época ele é cheio, sei quando tem corredeira. Meu paciente não. Só que é ele quem precisa atravessar, e tem que atravessar agora. Não vai dar para esperar a melhor época do ano, quando o rio está mais favorável à travessia. E ele conta com o que eu sei sobre aquelas águas para tentar chegar em segurança do outro lado.

Às vezes, o rio é estreitinho, e eu posso dizer para o paciente: “Pode pular, garanto que você chega do outro lado sem nem molhar seus pés!” E ele vai, e fica tudo bem. Às vezes, o rio é mais largo, não dá pra pular, mas eu sei de um trecho onde ele é mais raso, e posso dizer para o meu paciente: “Olha, você vai se molhar, mas vai chegar do outro lado em segurança!” E ele vai. Chega encharcado do outro lado, mas sorri agradecido e segue seu caminho.

Só que às vezes, muitas vezes, o rio é bem largo e bem fundo. É tão largo e tão profundo que vou ter que ter muito mais critério ao avaliar as chances dele chegar ao outro lado. Eu vou ter que perguntar, por exemplo, se meu paciente sabe nadar, se o preparo físico dele está em dia, se ele tem medo de água fria. Dependendo do que ele me responder, eu vou poder orientá-lo dos riscos da travessia, e ele vai poder decidir se quer corrê-los. Pode ser que meu paciente não saiba nadar. Pode ser que ele esteja numa condição física tão ruim que, apenas de olhá-lo, sei que não vai dar para chegar do outro lado. Nessa hora é que eu vou ter que ajudá-lo a tomar as decisões certas, para que ele não morra se debatendo desesperado no meio do rio gelado. Se ele decidir correr o risco, vou pegar minha canoa e atravessar do seu lado, orientar cada braçada. Estarei ao seu lado se ele não conseguir completar a travessia, e vou garantir que sua despedida seja digna e tranquila. E, se ele quiser permanecer na margem, não tem problema. Vou ficar do lado dele, fazendo companhia, até a noite chegar” (Ana Lucia Coradazzi, médica oncologista clínica).

A morte é linda. Os profissionais que trabalham com a morte afirmam isso e descrevem sua serenidade (mesmo se antes dela se sentiu muita dor). Enxergar a beleza da morte é também ultrapassar o luto com mais paz. A morte, assim como o nascimento, é um tabu e é uma passagem. Ao longo da História da Arte parto e morte quase não foram retratados e ficaram velados. Houve uma passagem histórica de mutismo quanto a esses temas e, portanto, de não esclarecimento. E sabemos que o que é calado é, de alguma forma, revelado. Ou seja, o que é segredo possivelmente aparece como doença no corpo. A consciência, o saber de ser e a informação nos trazem paz! E o que precisamos hoje e na hora da nossa morte é paz. Que tenhamos todos uma boa travessia!

Um abraço.